Um sândalo


 

Minha experiência com sândalo no Brasil é um pouco peculiar, associada ao aroma esquisito e enjoativo daquelas madeiras vendidas na rua ou a incensos de baixa qualidade queimados em lojinhas esotéricas. A lembrança é tão negativa que, mesmo após estudar o óleo essencial em aula, não tive coragem de usá-lo. O preço do óleo essencial desta variedade é bastante elevado e, a meu ver, pagar tanto por algo que imaginava detestar não valeria a pena. Para suas propriedades energéticas e cosméticas, temos o sândalo amyris, que não se trata de uma variedade verdadeira de sândalo, mas parece substituí-lo bem nos contextos da aromaterapia. 

Foi somente com meus estudos em perfumaria botânica que o sândalo album começou a me intrigar. Ler os relatos de seu uso na antiguidade, como era cultuado, sua incrível presença na história da perfumaria como um todo, me suscitaram uma curiosidade tremenda em conhecer novamente seu aroma, desta vez, de forma mais aberta e investigativa. 
Devo essa curiosidade quase histórica sobre os aromas aos livros de Mandy Aftel. Sua maneira de lidar com suas matérias primas parece uma arqueologia afetiva e fantasiosa, na qual mistura elementos de sua pesquisa histórica a percepções deleitosas e sensoriais, nos ensinando a difícil arte da entrega à investigação "ficcional" durante as vivências. É um exercício interessante no qual nos permitimos conjurar os ambientes e usos sagrados e antigos dos óleos durante nossa imersão em seus aromas. 

Sobre o sândalo e as notas de base, Aftel diz:

"As notas de fundo são as mais profundas, misteriosas e antigas de todos os ingredientes da perfumaria. Toda cultura antiga as usou – inclusive, durante séculos, compuseram a essência dos perfumes – então quando você trabalha com elas, literalmente tem em suas mãos partes da história da antiguidade. Você segura ingredientes que camelos carregaram pelas rotas de especiarias e que  Cleópatra misturava em sua oficina. Sândalo, por exemplo, é usado continuamente há quatro mil anos; seu aroma macio e acalentador fez dele uma escolha óbvia para as práticas espirituais. É dito que o óleo essencial destilado do sândalo é usado no Ceilão para o embalsamamento de príncipes mortos desde o século IX.*" 



Esse tipo de relação com os materiais que usamos torna o trabalho muito mais especial... aprendemos a reverenciar a origem e a história de cada um, não só pensando nas plantas que são usadas para produzi-los, mas em todo o longo percurso que tiveram pela história da civilização. É desse sentimento histórico que deriva, para mim, a magia da perfumaria botânica, muito mais do que qualquer visão especificamente "espiritual" da área. 

De volta ao sândalo, cabe mencionar que a variedade indiana do santalum album é hoje considerada uma espécie em risco de extinção. Infelizmente, descobri isto só depois de ter comprado meu óleo essencial e me entristece pensar que posso ter contribuído por pura curiosidade ao desaparecimento de uma espécie... o único consolo é ter comprado de uma marca que me parece ética... 
Para aqueles que buscam sândalo, parece-me que as variedades mais interessantes e éticas são as Australianas, o santalum spicatum, que dizem ter aroma mais floral e almiscarado, embora não o conheça, e também o óleo extraído de plantações comerciais de santalum album no país. 
Uma análise aprofundada e também alguns comentários sobre as variedades disponíveis podem ser encontradas aqui e aqui

Por último, gostaria de trazer algumas das minhas percepções quanto ao aroma, transcrevo abaixo algumas das anotações do meu diário aromático: 

. É um aroma solene, muito masculino, com algo que lembra uma mistura entre madeiras e minerais. Superficialmente, tem algo de difuso, esfumaçado, com um toque de madeira doce, algo na linha do cedro atlas ou deodara. É muito perfumado. Em suas profundezas, no entanto, vira umidade, um frio úmido das paredes de pedra de uma caverna... não tem cheiro de terra molhada (como patchouli) mas de pedra molhada. É calmo e seguro de si, de sua permanência e estabilidade. 
. Tem notas animálicas, embora não tenha encontrado o cheiro de urina que tantos descrevem... me lembra algo como o cheiro do cangote num abraço apaixonado, cheiro de pele limpa, quente e perfumada, cheia de intenção... entendo de onde vem seu caráter afrodisíaco. Sugere uma sexualidade acolhedora e profunda, à qual queremos nos entregar, nos submeter, mas na certeza de que seremos adoradas como rainhas... Não é nada selvagem, mas quase divina. 
. O curioso do aroma do sândalo é que parece ficar menos etéreo e aerado conforme o tempo passa. Como se seu cheiro se adensasse com seu envelhecimento, deixando mais evidente sua característica amadeirada e sua doçura. 

* AFTEL, Mandy. "Essence an Alchemy: a natural history of perfume" (Tradução minha)

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